quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Eclesiologia


VRC com prazo de validade vencido

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

            Tem circulado na internet um artigo do Pe. Alfredo Gonçalves, scalabriniano, conhecido também como Pe. Alfredinho. Tive a grata satisfação de ser colega do Pe. Alfredinho na CNBB, quando ele era assessor das Pastorais Sociais e eu assessor do Setor Vocações e Ministérios. Nutro por ele uma grande consideração. O referido artigo, com o título “Vocações com prazo de validade” questiona a juventude e o modo de agir dos jovens de hoje que chegam à Vida Religiosa Consagrada (VRC). Mesmo conhecendo o autor do artigo e acreditando na sua “boa intenção”, não posso deixar de discordar de alguns aspectos do seu texto.

            Depois de ler o artigo do Pe. Alfredinho fiquei com a sensação de que ele culpabiliza os jovens de hoje e a sociedade “pela arte do disfarce, da dissimulação e do engano”. Eles são culpados por cultivarem “motivações oblíquas e obtusas para pavimentar o caminho que leva à VRC”. Desenvolvem uma “capacidade inegável de camaleão”. Eles “abraçam a vida religiosa sem qualquer compromisso”, diluindo “no oceano nebuloso e fugidio da modernidade” instituições históricas portadoras de um grande patrimônio e de autênticas tradições. Essa juventude transviada volatiza ou liquidifica os valores sólidos e solidamente enraizados em compromissos duradouros, transformando experiência em experimento. Por trás dessa juventude “líquida” estaria a sociedade contemporânea que, controlada pelo “mercado de consumo”, dita as suas leis, especialmente nesses tempos de avanço da informática que, embora útil, não deixa de, através de suas “mensagens eletrônico-virtuais”, destruir amizades, amores e até noivados.

         Tudo isso seria suportável se não faltasse alguma coisa essencial. Em seu artigo o Pe. Alfredinho omite por completo qualquer referência à responsabilidade das instituições eclesiásticas, como é o caso da VRC. Se existem “vocações com prazo de validade” é porque existem também instituições eclesiástica com “prazo de validade vencido”. O atual estilo ou formato de VRC está superado há muito tempo. O próprio Concílio Vaticano II, através do parágrafo 2 do Decreto Perfectae Caritatis, já reconhecia esse fato e pedia às congregações religiosas que realizassem uma profunda mudança, voltando às origens, ou seja ao Evangelho. Mas, nesses cinquenta anos que nos separam do Vaticano II, não houve uma revolução no estilo da VRC. Tivemos algumas tentativas, como foi o caso da inserção aqui na América Latina. Mas, no seu conjunto, a VRC, no seu modus vivendi (modo de ser) e no seu modus faciendi (modo de agir), continua esclerosada, superada, ultrapassada. Ela ainda se pauta por um estilo tipicamente medieval e, pior ainda, da Contrarreforma.

         Já na primeira metade dos anos 1970 o jesuíta Raimundo Hostie publicou o resultado de uma pesquisa, na qual salientava muito bem essa questão. Na metade dos anos 1990 Felicísimo Martinez Díez, por meio do seu livro Vida Religiosa: carisma e missão (Paulus) evidenciava o completo falimento do atual modelo de VRC e chegava à conclusão de que, para algumas congregações, só restava a morte como futuro. Trazendo dados interessantes Hostie e Díez mostravam que 75% das ordens e congregações fundadas já morreram, já foram extintas. E dizem, sem pudor, que a “causa mortis” destes institutos teria sido a “esclerose múltipla institucional”, causada pelo distanciamento das origens e pela absorção de um estilo de vida distante da radicalidade inicial.

         As pesquisas e os estudos realizados por Rulla, Manenti, Cencini e outros pesquisadores, especialmente da Faculdade de Psicologia da Universidade Gregoriana de Roma, dão conta de que, na dinâmica da psicologia da vocação, os semelhantes se atraem. Logo, se chegam até às congregações e seminários “vocações com prazo de validade” é porque foram atraídas por instituições semelhantes. Os pesquisadores mencionados chamam a atenção para a importância da propaganda vocacional das instituições eclesiásticas que atrai somente aquelas pessoas que se identificam com elas. Portanto, a responsabilidade ética e moral das instituições eclesiásticas pelos casos das “vocações com prazo de validade” é indiscutível. São elas que, com seu estilo, atraem este tipo de jovem vocacionado.

         Além do mais é preciso distinguir claramente a vocação das formas concretas históricas que ela assume no decorrer do tempo. É preciso dizer com toda a ênfase que só existe uma única vocação: o chamamento divino para ser pessoa humana (Gn 1,27-31) e para seguir Jesus Cristo (Mc 1,16-20). O Vaticano II, na Lumen Gentium (cap. V), chamou isso de vocação universal à santidade. O que vem depois é consequência disso. Assim sendo é perfeitamente possível, do ponto de vista bíblico e teológico, que alguém, para viver plenamente a sua vocação humana e cristã, possa mudar a sua forma concreta, histórica, no decorrer dos anos (1Cor 7,17-35). O problema é que a Igreja, a partir do IV século, vai absolutizando a vocação específica do padre, do frade e da freira, como sendo as únicas e verdadeiras vocações. Por isso não se aceita a possibilidade de que uma pessoa deixe a vida religiosa ou o exercício do ministério. Isso é visto como traição. Confunde-se a vocação humana e cristã com suas formas momentâneas. Porém, muitas vezes, as pessoas, para não traírem a vocação fundamental, precisam se distanciar de determinadas formas específicas esclerosadas, arcaicas e ultrapassadas.

         Outro aspecto a considerar é de ordem teológica e tem a ver com a fé. Deus não deixou de chamar pessoas para que vivam intensamente a sua humanidade e para seguir Jesus Cristo. E é preciso afirmar claramente que Deus não chama desmiolados, mas pessoas sérias. Às vezes existem momento de crise (1Sm 3,1), mas a responsabilidade não é de Deus, mas da mediação humana. Aqueles que são encarregados de comunicar o chamamento divino se corrompem e impedem que Deus chame através deles (1Sm 2,12-36).

         Cabe, porém, esclarecer que essas vocações sérias chamadas por Deus não obedecem padrões e critérios convencionais estabelecidos pela instituição eclesiástica (1Sm 16,6-7). Deus é livre de chamar quem ele quer. Por isso, muitas vocações são rejeitadas pelas instituições eclesiásticas porque não se encaixam nas “formas” por elas estabelecidas. Terminam permanecendo apenas aquelas subservientes, bajuladoras, carreiristas, oportunistas etc. Mas é preciso também evidenciar que Deus não chama pessoas “boazinhas”. Ele tem preferência por aquelas que fogem completamente dos padrões convencionais das instituições eclesiásticas (1Cor 1,26-30). Basta dar uma olhada no grupo que Jesus escolheu para se perceber essa verdade. Todos, sem exceção, tinham defeitos (Mc 8,14-21). No grupo havia carreiristas (Mc 10,35-37), covardes (Mc 14,66-72) e até ladrão (Jo 12,6). Portanto, as instituições eclesiásticas precisam admitir o princípio de que Deus continua chamando e chamando pessoas assim, com a ideia de que vocação tem “prazo de validade”. Cabe-lhes a responsabilidade de educá-las para a radicalidade evangélica. Desta forma, o fracasso não está nos jovens e na sociedade, mas no modelo eclesiástico incapaz de transformar os jovens “camaleônicos” em discípulos e discípulas corajosos de Jesus (Mc 16,20; Lc 24,33-35). E a sua incapacidade advém do seu estilo pouco evangélico e mais identificado com os “tiranos deste mundo” (Mc 10,42-43).

         Lamentavelmente o Pe. Alfredinho usa, no seu artigo, uma pedagogia que a Igreja vem usando há séculos, mas que nunca funcionou, a não ser para afastar dela as pessoas. Trata-se de considerar a instituição eclesiástica como infalível e, por causa disso, atribuir todos os males à humanidade e ao mundo. Por esse motivo, na Idade Média, a hierarquia da Igreja Católica Romana não quis dialogar com as pessoas que pensavam diferente, preferindo queimá-las ou enforca-las através da “santa Inquisição”. Se tivesse dialogado a doutrina católica, hoje, seria bem diferente e ela não carregaria na sua história um dos seus piores estigmas. Na Idade Moderna não quis dialogar com o iluminismo e com a ciência, preferindo fechar-se em concepções arcaicas e ultrapassadas que ainda hoje fazem rir. Por fim, na idade contemporânea, se opôs decididamente contra as grandes conquistas da humanidade como a autonomia, a liberdade, a democracia, o socialismo e a liberdade de consciência. E no apagar das luzes do século XIX, o papa Pio IX ainda condenava e excomungava quem aderisse a essas ideias. O resultado foi que estas coisas foram conquistadas apesar da Igreja e, quase sempre, contra ela.

         Infelizmente, como afirmou recentemente um teólogo, a instituição eclesiástica continua com a sua “incapacidade de sequer perceber que estruturas precisam ser modificadas. Os respectivos portadores de decisões fecham-se, numa verdadeira cegueira diante do sistema, contra a intelecção necessária” (BLANK, Renold. Deus e sua criação, Paulus, 2013, p. 104). Mas os cristãos e as cristãs são chamados por Deus “para modificar também todas aquelas estruturas que não correspondem a sua vontade e a suas ideias” (ibidem). E não só. Terão que abolir todas as condições que levaram ao surgimento dessas estruturas que precisam ser mudadas.

Seria, pois, desejável que o Pe. Alfredinho revisse o seu artigo e não culpabilizasse apenas os jovens e a sociedade, mas deixasse bem clara a responsabilidade das instituições eclesiásticas pelo fenômeno das vocações “com prazo de validade”. É preciso, com muita humildade, reconhecer que tais instituições, inclusive a VRC, estão viciadas, dominadas por estruturas de pecado que corrompem até mesmo as pessoas mais inocentes e bem intencionadas. Os recentes acontecimentos no interior da Igreja não nos deixam mentir.

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