quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Realidade eclesial


Não adianta tapar o sol com a peneira
 
José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário
            Dias atrás publiquei em meu blog um artigo sobre a impostura dentro do ministério ordenado. O artigo também foi replicado pela agência de notícias Adital e por vários outros sites e blogs. Após a publicação do artigo recebi algumas mensagens desaforadas de pessoas completamente transtornadas, que, ao invés de pararem para refletir sobre o assunto, preferiram me “desqualificar”, como se a atitude de desqualificar alguém pudesse diminuir substancialmente a verdade dos fatos.
            É claro que ser desqualificado por determinadas pessoas não me afeta e nem me afetará, já que considero normal que certos indivíduos transtornados, incapazes de dialogar de igual para igual, prefiram a baixeza e a vulgaridade. Diante da evidência dos fatos tentam negá-los não com a clareza científica e o rigor da lógica, mas apelando para a violência, a agressividade e a difamação.
            Mas não adianta tapar o sol com a peneira. Ele continuará brilhando sobre a cabeça do tonto que fizer isso. Tomás de Aquino, na Suma Teológica, afirma que a verdade vem sempre do Espírito Santo, mesmo se proclamada por um demônio. A impostura no ministério ordenado existe desde o início do cristianismo e, creio, sempre existirá. Entendo a impostura, seguindo a indicação dos melhores dicionários, como sendo a ação de enganar com falsas aparências ou falsas imputações. A impostura é o mesmo que embuste, engano artificioso, afetação de grandeza, de superioridade, de orgulho. Toda impostura é sempre acompanhada de presunção e de vaidade. No âmbito do ministério ordenado a impostura está sempre relacionada com a sede de poder, com a avareza ou amor ao dinheiro e a ambição pela fama. É claro que na raiz de tudo está sempre o amor ao dinheiro (1Tm 6,10), fazendo com que certos ministros ordenados transformem a piedade em fonte de lucro (1Tm 6,6). Para conseguir estes três objetivos alguns ministros ordenados não temem mentir, enganar, aparentar, fazer de conta etc.
            Quero reafirmar o que disse no artigo anterior: a maioria absoluta dos ministros ordenados são pessoas equilibradas, honestas, simples, doadas, dedicadas inteiramente ao povo. Eles estão espalhados por todos os cantos, principalmente pelas periferias das grandes cidades, pelos interiores, vivendo muitas vezes em situação de pobreza, sem quase nenhum conforto, trabalhando com muita paixão e muito gosto por amor à causa do Reino. Eles não vivem de aparências e artificiosamente porque não têm ambições, a não ser aquela de servir com humildade e simplicidade a comunidade à qual foram enviados como ministros. Eu, pessoalmente, conheço centenas desses ministros ordenados.
          Porém, não se pode negar a presença no ministério ordenado de verdadeiros impostores que, mesmo em número bem inferior aos ministros honestos, causam muitos desastres dentro da Igreja e geram escândalos para o povo cristão. No momento atual a impostura se faz mais visível devido a certo marketing católico, liderado por sujeitos que transformaram a cruz de Cristo em produto de consumo, que tende a colocar em destaque exatamente estes ministros impostores e transtornados. Uma análise criteriosa, metodológica e científica da presença de certos padres na mídia confirmaria o que estou dizendo. O modo como falam, gesticulam histericamente, se vestem etc. etc. fala por si mesmo e denuncia a presença de um impostor, de um transtornado que precisa aparentar e falsificar.
            Sim, é inútil querer tapar o sol com a peneira. A impostura no ministério ordenado é uma realidade que não se pode negar a não ser com a própria impostura. Como disse no artigo anterior, nas últimas duas décadas foram publicados inúmeros estudos que não deixam dúvidas. Gostaria de citar apenas um, publicado mais recentemente e que, para mim, é a síntese de todos os estudos sérios nos quais aparece com forte evidência a questão da impostura de ministros ordenados. Trata-se do livro Sofrimento psíquico dos Presbíteros do professor da PUC de Minas Gerais, o Dr. William César Castilho Pereira. O livro com 542 páginas é pautado pela metodologia científica da pesquisa de campo, com fundamentação teórica consistente, acompanhado de coleta de dados, observação e análise qualitativa durante 15 anos. Portanto, um estudo científico sério, cujos dados finais só podem ser contestados através de um outro estudo científico igualmente sério e rigoroso.
            Mas, como já afirmava no artigo anterior, mesmo que não existissem estudos sobre o assuntos, os fatos não me deixariam mentir. Os recentes casos de pedofilia dos padres, os escândalos financeiros que penetraram até no Vaticano, as intrigas e futricas clericais das quais tomamos conhecimento a toda hora, não me permitiriam dizer que está tudo bem e que não há imposturas no ministério ordenado. Elas ressoaram inclusive no último conclave e o atual papa, Francisco, não as esconde. Volta e meia, em suas falas, ele volta ao assunto e questiona a impostura de certos ministros ordenados. Basta ler os pronunciamentos dele, especialmente aqueles dirigidos aos padres, para perceber isso com muita clareza.
            Além disso a minha experiência pessoal não me permitiria fingir, fazendo de conta que nada disso existe. Tive a graça de, como teólogo, assessorar centenas de encontros e cursos ligados à área das vocações e dos ministérios. Estive dando assessoria em todos os estados do Brasil, exceto Amapá e Roraima, embora nos encontros e cursos realizados nos outros estados do norte do país sempre encontrei pessoas desses estados. Devido aos temas estudados em minhas assessorias a questão da impostura dos ministros ordenados sempre aparecia. Pessoas simples e também pessoas com mais conhecimento acadêmico e mais capacidade de análise crítica relatavam nesses cursos e encontros diversos casos e situações. Percebia-se nitidamente que não estavam inventando e nem mentindo, mas apenas expondo situações que as deixavam, muitas vezes, tristes e decepcionadas, pois amavam profundamente a Igreja e sofriam com as formas de impostura que relatavam.
            Também durante o período que estive como assessor do Setor Vocações e Ministérios da CNBB (1999 – 2003) pude tomar conhecimento de inúmeros casos de impostura de ministros ordenados. Várias vezes entregamos dossiês completos de situações para os bispos do Conselho Permanente e da Comissão Episcopal de Pastoral. Lembro perfeitamente de um caso bem escabroso que nos foi enviado por um juiz de direito de uma comarca do estado de São Paulo, que havia julgado e condenado um padre. O juiz, que nos mandou os autos do processo, perguntava à CNBB porque os bispos não estavam atentos a esses casos e por que nada faziam para não mais permitir que situações como aquela acontecessem. Mas os bispos, inclusive aqueles do Conselho Permanente e da Comissão Episcopal de Pastoral, de fato, nunca fizeram nada. Nossos dossiês eram recebidos e esquecidos. Somente uma vez, por pressão do bispo que presidia o Setor, tratou-se dos problemas numa reunião. Mas os bispos presentes saíram pela tangente e recusaram-se a aceitar o óbvio e a tomar alguma providência.
            Pude ainda tomar conhecimento de outros casos de impostura de ministros ordenados quando fui assessor e depois presidente do Instituto de Pastoral Vocacional (IPV), com sede em São Paulo. Como o IPV, formado por congregações de carisma vocacional, tinha atividades que envolviam pessoas de todo o Brasil, era possível, em seus encontros e cursos, tomar conhecimento de muita coisa. Mesmo porque um dos objetivos do IPV era preparar animadores e animadoras vocacionais para lidar com situações e casos como o da impostura dos ministros e que acabavam interferindo no serviço de animação vocacional.
            Seria muito melhor para mim falar de outras coisas e não ter que vir a público denunciar esses casos. Mas como discípulo-missionário, seguidor de Jesus Cristo, eu não posso me calar, ainda que outros, que têm o dever de fazer isso, se calem e se omitam. O que espero é que a Igreja Católica Romana tenha a coragem de enfrentar essas situações e ouse encontrar soluções concretas para esse caso, de modo que o ministério ordenado seja cada vez menos infestado pela impostura de certos ministros ordenados. Aliás, é bom registrar que a própria Igreja Romana já dispõe de ótimos instrumentais para realizar isso. Aqui no Brasil, por exemplo, temos excelentes documentos como as Diretrizes para a Formação dos Diáconos Permanentes, as Diretrizes para a Formação dos Presbíteros, o documento sobre o Egressos, que dá orientações acerca de como lidar com seminaristas que saem ou são expulsos de seminários. Nestes documentos as orientações são bem claras e situações, como a impostura por parte de futuros ministros ordenados, levadas em conta, com indicações práticas bem precisas. Mas, tendo presente também a minha experiência, a maior parte dos bispos não leva a sério o que nestes documentos está escrito. Continuam agindo institivamente, subjetivamente e segundo as necessidades imediatas.
            Paulo Freire, há mais de quarenta anos, numa carta endereçada a um “jovem teólogo”, assim se expressava: “Já é tempo de os cristãos distinguirem essa coisa tão óbvia, que é Amor, das suas formas patológicas: sadismo e masoquismo. O contrário do amor não é, como se pensa muitas vezes, o ódio, e sim o medo de amar, que é o medo de ser livre [...]. Os Seminários, para se constituírem em vozes a favor da modificação da estrutura social, devem constituir-se desde já em centros utópicos, ou seja, em denúncia das estruturas desumanizantes nas quais os homens possam ser mais, sorrir, cantar, criar, recriar. Somente assim, os Seminários poderão ser proféticos e falar autenticamente de esperança. É o que eu também desejo e espero, de modo que a impostura entre ministros ordenados caminhe progressivamente para a sua extinção.
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Aproveito para comunicar que os artigos de minha autoria, relacionados a questões de análise da realidade social e política, passarão a ser publicado pelo blog Centro de Reflexão e de Análise da Realidade (CREAR) cujo endereço é:

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