segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Atualidade


Morrer: um ato profundamente humano

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

            Dentro em breve estaremos comemorando o Dia de Finados. Veremos uma procissão de pessoas visitando os cemitérios. Alguns irão apenas formalmente, pois pega mal os vizinhos saberem que a família nem sequer visitou o túmulo dos falecidos. Outros chorarão lágrimas de crocodilo, uma vez que, enquanto seus familiares eram vivos, nunca se preocuparam com eles. Outros, ainda, farão visitas verdadeiras para, junto ao túmulo dos mortos, fazer memória de seus antepassados. Mas creio que pouquíssimos aproveitarão deste momento para meditar sobre a morte como mistério profundamente humano.

A vida termina no momento da morte da pessoa. Ao dar seu último respiro o ser humano volta à terra de onde foi retirado (Gn 3,19; Sl 90,3; Jó 34,15). A morte é um fenômeno natural que atinge todos os seres viventes. Não conhecemos nenhum ser vivo que não passe por essa experiência. Todos nós somos concebidos, gestados, nascemos, vivemos por um período e depois morremos. É a lei da natureza e da qual não há como fugir. Afeta todos os seres vivos, sem exceção.

            É claro que existem mortes fora do tempo e antes da hora. Mortes provocadas pela violência, pelo ódio, pela fome, pelas guerras, pelas drogas e pelo egoísmo humano. Este tipo de morte não é natural e nem normal. Contra essa forma de morte devemos nos opor de maneira decidida, uma vez que ela violenta um direito fundamental dos seres vivos, que é morrer depois de uma boa longevidade e de morte natural. Mas, fora isso, a morte faz parte do ritmo da vida e não há como escapar dela.

            Mas por que, sendo um fenômeno natural, temos tanto medo da morte? Por que sofremos quando alguém parte, mesmo depois de uma longa vida? Porque também isso é natural (Jo 11,33-36). Tão natural como o medo que o bebê sente quando tem que deixar o útero para entrar nesta vida, como dizem os estudiosos do assunto. A morte lança a pessoa numa dimensão nova e da qual ainda não podemos participar, por enquanto. Porque ficamos, e não vamos com a pessoa amada, sofremos com a sua perda, com a sua separação.

            Até certo tempo atrás os cristãos pensavam que a morte biológica era o resultado do pecado. Acreditava-se que os nossos progenitores, designados como Adão e Eva, não teriam morrido se não tivessem pecado. Acreditava-se também que a humanidade descendente de Adão e Eva não morreria se não tivesse acontecido aquele primeiro pecado de nossos pais (Gn 3). Essa crença estava fundamentada numa interpretação literal, e até fundamentalista, de alguns textos bíblicos (Rm 5,12).

Hoje, porém, com a ajuda dos conhecimentos científicos, já temos condições de saber que todos os seres vivos morrem e que a morte é parte da dinâmica da vida. Morrer é natural e humano. Assim sendo, não podemos mais continuar acreditando que a morte biológica é consequência do pecado de Adão e Eva, mesmo porque Adão e Eva não foram personagens históricos reais, mas apenas nomes simbólicos que representam a humanidade de todos os tempos. Adão significa literalmente humano, ou melhor, aquele que foi feito com o barro (Gn 2,7). Eva literalmente significa “a Vivente” ou “a mãe de todo vivente” (Gn 3,20).

Quando a Bíblia afirma que a morte é fruto do pecado ela não está falando da morte biológica, mas de outros dois tipos de morte. Antes de tudo da experiência pavorosa da morte que atormenta a humanidade. De fato, mesmo sabendo que vamos morrer; que a morte é natural, nós temos medo de morrer. Temos medo de morrer porque não amamos. A falta de amor gera em nós o medo e o pavor (1Jo 4,18). Aliás, existem pessoas que vivem como se não fossem morrer e quando começam a perceber que “não vão ficar para a semente” entram em pânico e em desespero. Esse medo é provocado em nós pela experiência do pecado. Porque nos sentimos pecadores, ou seja, porque não amamos, tememos a hora derradeira, o encontro definitivo com Deus.

Além disso, ao associar a morte ao pecado, a Bíblia não está falando da morte biológica, mas daquilo que o livro do Apocalipse chama de “segunda morte” (Ap 2,11; 20,6; 21,8), ou seja, da perdição definitiva. Trata-se da decisão deliberada da pessoa de não aceitar a salvação oferecida por Deus (Hb 10,26-31). Esta é a morte definitiva. Porém, nenhum de nós pode afirmar que alguém morreu definitivamente, ou seja, rejeitou a salvação oferecida, pois o julgamento cabe somente ao Filho de Deus (Jo 5,22). E o julgamento é sempre de salvação e não de condenação (Jo 3,17).

Ao morrer, a pessoa morre por inteira, morre na sua totalidade para depois ressuscitar. Antigamente se pensava que morria somente o corpo e que a alma, sendo imortal, permanecia viva esperando o dia da ressurreição. Hoje, com o avanço científico dos estudos bíblicos, sabemos que o ser humano é uma unidade. Quando falamos de alma e de corpo não estamos falando de duas realidades separadas, mas de um único ser humano que possui duas dimensões inseparáveis: a dimensão corporal, ou seja, de visibilidade e de relacionamento com os outros e a dimensão de interioridade, de subjetividade. Assim sendo, quando a pessoa morre, ela morre por completo.

No judaísmo antigo não existia a crença na ressurreição. Acreditava-se que a vida terminava com a morte biológica. A vida das pessoas, particularmente do homem (macho) continuava na descendência (Sl 102,28-29) e no que ele deixava como grandes realizações (Pv 10,7; Sl 112,2.6). Jó, um dos maiores cantores dessa realidade, assim proclama: “quem desce ao túmulo, nunca mais subirá” (7,9). Para o salmista “os mortos já não louvam a Javé, nem os que descem ao lugar do silêncio” (Sl 115,17). Mais tarde passou-se a acreditar que as pessoas eram colocadas no Sheol (ou Xeol), uma espécie de lugar para a purificação provisória dos mortos que esperavam a ressurreição. Porém, no judaísmo antigo, o Sheol significava simplesmente túmulo, cova ou abismo. Não se acreditava em ressurreição.

Portanto, a crença na ressurreição é tardia. Começa a aparecer depois que o povo hebreu passou pela amarga experiência do exílio, da diáspora, da dominação e da perseguição. Alguns, diante de tanto sofrimento, da prepotência do opressor, começaram a se perguntar se a vida se resumia a apenas aquilo: dor, sofrimento, injustiça etc. Começa, então, a nascer a esperança de que há algo além da morte. Inicialmente não era uma crença na vida após a morte, mas a certeza de que o opressor seria destruído e, por isso, era preciso resistir até o fim, a fim de conhecer a libertação (Dn 8-10). Aos poucos, por influência da cultura grega, essa crença vai se transformando em crença na ressurreição, ou seja, numa vida que continuaria depois da morte. Assim, já próximo dos tempos de Jesus, os escritos gregos do Primeiro Testamento, como os Livros dos Macabeus, vão falar de ressurreição dos mortos.

Mas, mesmo no tempo de Jesus, a crença na ressurreição ainda não era coisa pacífica. Conhecemos a polêmica do Mestre com os saduceus, que afirmavam não existir ressurreição (Mt 22,23). Será o cristianismo, a partir da experiência de Jesus, a proclamar definitivamente a crença na ressurreição. Paulo será o grande apóstolo da ressurreição, chegando a afirmar que se Cristo não ressuscitou a fé cristã seria ilusória (1Cor 15,16-19).

Não se pense, porém, que a vida que brota da ressurreição é algo que não tem nenhuma relação com a vida presente. A vida a partir da ressurreição é diferente, é “semente incorruptível”, mas sua origem será sempre, como diz Paulo, aquela mesma que foi “semeada corruptível” (1Cor 15,42), ou “semeada corpo animal” (1Cor 15,44). Não será outra vida diversa daquela que vivemos aqui. Estas palavras do apóstolo nos deveriam ajudar a valorizar melhor essa vida e também a morte, como experiência profundamente humana. Mais do que ficar focados ou até obcecados pelo “céu”, para onde queremos ir, deveríamos viver mais intensamente esta vida presente e nos prepararmos para morrer de uma forma profundamente humana. “Se o grão de trigo não cai na terra e não morre, fica sozinho. Mas se morre, produz muito fruto” (Jo 12,24). Não seria a atual solidão das pessoas uma expressão visível do medo de encarar a morte de maneira mais humana e natural? Não seria a depressão, tão marcante em nossa sociedade, uma forma de negar a realidade da morte, tão natural e tão humana? Vale a pena, pelo menos no dia de Finados, pensar um pouco nisso.

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Aproveito para informar que meus artigos sobre assuntos não ligados diretamente à temática religiosa serão publicados, a partir de agora, no blog Centro de Reflexão e de Análise da Realidade (CREAR): http://crear-lisboa.blogspot.com

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Realidade eclesial


Não adianta tapar o sol com a peneira
 
José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário
            Dias atrás publiquei em meu blog um artigo sobre a impostura dentro do ministério ordenado. O artigo também foi replicado pela agência de notícias Adital e por vários outros sites e blogs. Após a publicação do artigo recebi algumas mensagens desaforadas de pessoas completamente transtornadas, que, ao invés de pararem para refletir sobre o assunto, preferiram me “desqualificar”, como se a atitude de desqualificar alguém pudesse diminuir substancialmente a verdade dos fatos.
            É claro que ser desqualificado por determinadas pessoas não me afeta e nem me afetará, já que considero normal que certos indivíduos transtornados, incapazes de dialogar de igual para igual, prefiram a baixeza e a vulgaridade. Diante da evidência dos fatos tentam negá-los não com a clareza científica e o rigor da lógica, mas apelando para a violência, a agressividade e a difamação.
            Mas não adianta tapar o sol com a peneira. Ele continuará brilhando sobre a cabeça do tonto que fizer isso. Tomás de Aquino, na Suma Teológica, afirma que a verdade vem sempre do Espírito Santo, mesmo se proclamada por um demônio. A impostura no ministério ordenado existe desde o início do cristianismo e, creio, sempre existirá. Entendo a impostura, seguindo a indicação dos melhores dicionários, como sendo a ação de enganar com falsas aparências ou falsas imputações. A impostura é o mesmo que embuste, engano artificioso, afetação de grandeza, de superioridade, de orgulho. Toda impostura é sempre acompanhada de presunção e de vaidade. No âmbito do ministério ordenado a impostura está sempre relacionada com a sede de poder, com a avareza ou amor ao dinheiro e a ambição pela fama. É claro que na raiz de tudo está sempre o amor ao dinheiro (1Tm 6,10), fazendo com que certos ministros ordenados transformem a piedade em fonte de lucro (1Tm 6,6). Para conseguir estes três objetivos alguns ministros ordenados não temem mentir, enganar, aparentar, fazer de conta etc.
            Quero reafirmar o que disse no artigo anterior: a maioria absoluta dos ministros ordenados são pessoas equilibradas, honestas, simples, doadas, dedicadas inteiramente ao povo. Eles estão espalhados por todos os cantos, principalmente pelas periferias das grandes cidades, pelos interiores, vivendo muitas vezes em situação de pobreza, sem quase nenhum conforto, trabalhando com muita paixão e muito gosto por amor à causa do Reino. Eles não vivem de aparências e artificiosamente porque não têm ambições, a não ser aquela de servir com humildade e simplicidade a comunidade à qual foram enviados como ministros. Eu, pessoalmente, conheço centenas desses ministros ordenados.
          Porém, não se pode negar a presença no ministério ordenado de verdadeiros impostores que, mesmo em número bem inferior aos ministros honestos, causam muitos desastres dentro da Igreja e geram escândalos para o povo cristão. No momento atual a impostura se faz mais visível devido a certo marketing católico, liderado por sujeitos que transformaram a cruz de Cristo em produto de consumo, que tende a colocar em destaque exatamente estes ministros impostores e transtornados. Uma análise criteriosa, metodológica e científica da presença de certos padres na mídia confirmaria o que estou dizendo. O modo como falam, gesticulam histericamente, se vestem etc. etc. fala por si mesmo e denuncia a presença de um impostor, de um transtornado que precisa aparentar e falsificar.
            Sim, é inútil querer tapar o sol com a peneira. A impostura no ministério ordenado é uma realidade que não se pode negar a não ser com a própria impostura. Como disse no artigo anterior, nas últimas duas décadas foram publicados inúmeros estudos que não deixam dúvidas. Gostaria de citar apenas um, publicado mais recentemente e que, para mim, é a síntese de todos os estudos sérios nos quais aparece com forte evidência a questão da impostura de ministros ordenados. Trata-se do livro Sofrimento psíquico dos Presbíteros do professor da PUC de Minas Gerais, o Dr. William César Castilho Pereira. O livro com 542 páginas é pautado pela metodologia científica da pesquisa de campo, com fundamentação teórica consistente, acompanhado de coleta de dados, observação e análise qualitativa durante 15 anos. Portanto, um estudo científico sério, cujos dados finais só podem ser contestados através de um outro estudo científico igualmente sério e rigoroso.
            Mas, como já afirmava no artigo anterior, mesmo que não existissem estudos sobre o assuntos, os fatos não me deixariam mentir. Os recentes casos de pedofilia dos padres, os escândalos financeiros que penetraram até no Vaticano, as intrigas e futricas clericais das quais tomamos conhecimento a toda hora, não me permitiriam dizer que está tudo bem e que não há imposturas no ministério ordenado. Elas ressoaram inclusive no último conclave e o atual papa, Francisco, não as esconde. Volta e meia, em suas falas, ele volta ao assunto e questiona a impostura de certos ministros ordenados. Basta ler os pronunciamentos dele, especialmente aqueles dirigidos aos padres, para perceber isso com muita clareza.
            Além disso a minha experiência pessoal não me permitiria fingir, fazendo de conta que nada disso existe. Tive a graça de, como teólogo, assessorar centenas de encontros e cursos ligados à área das vocações e dos ministérios. Estive dando assessoria em todos os estados do Brasil, exceto Amapá e Roraima, embora nos encontros e cursos realizados nos outros estados do norte do país sempre encontrei pessoas desses estados. Devido aos temas estudados em minhas assessorias a questão da impostura dos ministros ordenados sempre aparecia. Pessoas simples e também pessoas com mais conhecimento acadêmico e mais capacidade de análise crítica relatavam nesses cursos e encontros diversos casos e situações. Percebia-se nitidamente que não estavam inventando e nem mentindo, mas apenas expondo situações que as deixavam, muitas vezes, tristes e decepcionadas, pois amavam profundamente a Igreja e sofriam com as formas de impostura que relatavam.
            Também durante o período que estive como assessor do Setor Vocações e Ministérios da CNBB (1999 – 2003) pude tomar conhecimento de inúmeros casos de impostura de ministros ordenados. Várias vezes entregamos dossiês completos de situações para os bispos do Conselho Permanente e da Comissão Episcopal de Pastoral. Lembro perfeitamente de um caso bem escabroso que nos foi enviado por um juiz de direito de uma comarca do estado de São Paulo, que havia julgado e condenado um padre. O juiz, que nos mandou os autos do processo, perguntava à CNBB porque os bispos não estavam atentos a esses casos e por que nada faziam para não mais permitir que situações como aquela acontecessem. Mas os bispos, inclusive aqueles do Conselho Permanente e da Comissão Episcopal de Pastoral, de fato, nunca fizeram nada. Nossos dossiês eram recebidos e esquecidos. Somente uma vez, por pressão do bispo que presidia o Setor, tratou-se dos problemas numa reunião. Mas os bispos presentes saíram pela tangente e recusaram-se a aceitar o óbvio e a tomar alguma providência.
            Pude ainda tomar conhecimento de outros casos de impostura de ministros ordenados quando fui assessor e depois presidente do Instituto de Pastoral Vocacional (IPV), com sede em São Paulo. Como o IPV, formado por congregações de carisma vocacional, tinha atividades que envolviam pessoas de todo o Brasil, era possível, em seus encontros e cursos, tomar conhecimento de muita coisa. Mesmo porque um dos objetivos do IPV era preparar animadores e animadoras vocacionais para lidar com situações e casos como o da impostura dos ministros e que acabavam interferindo no serviço de animação vocacional.
            Seria muito melhor para mim falar de outras coisas e não ter que vir a público denunciar esses casos. Mas como discípulo-missionário, seguidor de Jesus Cristo, eu não posso me calar, ainda que outros, que têm o dever de fazer isso, se calem e se omitam. O que espero é que a Igreja Católica Romana tenha a coragem de enfrentar essas situações e ouse encontrar soluções concretas para esse caso, de modo que o ministério ordenado seja cada vez menos infestado pela impostura de certos ministros ordenados. Aliás, é bom registrar que a própria Igreja Romana já dispõe de ótimos instrumentais para realizar isso. Aqui no Brasil, por exemplo, temos excelentes documentos como as Diretrizes para a Formação dos Diáconos Permanentes, as Diretrizes para a Formação dos Presbíteros, o documento sobre o Egressos, que dá orientações acerca de como lidar com seminaristas que saem ou são expulsos de seminários. Nestes documentos as orientações são bem claras e situações, como a impostura por parte de futuros ministros ordenados, levadas em conta, com indicações práticas bem precisas. Mas, tendo presente também a minha experiência, a maior parte dos bispos não leva a sério o que nestes documentos está escrito. Continuam agindo institivamente, subjetivamente e segundo as necessidades imediatas.
            Paulo Freire, há mais de quarenta anos, numa carta endereçada a um “jovem teólogo”, assim se expressava: “Já é tempo de os cristãos distinguirem essa coisa tão óbvia, que é Amor, das suas formas patológicas: sadismo e masoquismo. O contrário do amor não é, como se pensa muitas vezes, o ódio, e sim o medo de amar, que é o medo de ser livre [...]. Os Seminários, para se constituírem em vozes a favor da modificação da estrutura social, devem constituir-se desde já em centros utópicos, ou seja, em denúncia das estruturas desumanizantes nas quais os homens possam ser mais, sorrir, cantar, criar, recriar. Somente assim, os Seminários poderão ser proféticos e falar autenticamente de esperança. É o que eu também desejo e espero, de modo que a impostura entre ministros ordenados caminhe progressivamente para a sua extinção.
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Aproveito para comunicar que os artigos de minha autoria, relacionados a questões de análise da realidade social e política, passarão a ser publicado pelo blog Centro de Reflexão e de Análise da Realidade (CREAR) cujo endereço é:

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Mês missionário


Dimensão missionária da Igreja

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

            No Brasil, há algumas décadas, a Igreja Católica Romana considera outubro como mês missionário. O objetivo, certamente, é levar os católicos a tomarem cada vez mais consciência de uma das dimensões fundamentais do discipulado ou seguimento de Jesus. A Igreja é, por natureza, toda ela missionária, nos lembrava há 50 anos atrás o Concílio Vaticano II. A dimensão missionária, explica o documento conciliar Ad Gentes, brota da missão do Filho e do Espírito Santo. O Pai manda, na plenitude do tempo, o seu Filho que nasce de mulher (Gl 4,4) e envia, através de Jesus (Jo 15,26), o Espírito (Jo 14,16). O Filho, por sua vez, envia os discípulos como missionários pelo mundo inteiro (Mc 16,15), os quais são revestidos da força do Espírito (At 1,8). Portanto, uma comunidade cristã que não é missionária, não é Igreja (ekklesía), ou seja, não é comunidade de fé convocada e reunida pela Santíssima Trindade. Pode ser um clube, uma associação de pessoas religiosas, um grupo de amigos, mas não Igreja, no sentido bíblico e teológico desta palavra.

            Dizer que a Igreja é, por natureza, missionária implica saber e entender qual é a sua missão. A missionariedade decorre da missão. Qual é, então, a missão da Igreja? A mais antiga definição da missão da comunidade cristã, ou seja, da Igreja encontra-se no evangelho de Marcos: “Vão pelo mundo inteiro e anunciem a Boa Nova para toda a humanidade” (Mc 16, 15).

Três aspectos importantes da missão aparecem neste mandato que Marcos atribui a Jesus. Em primeiro lugar, o núcleo central da missão. Trata-se de “anunciar a Boa Notícia”. Mas, qual “Boa Notícia”? Lucas e Mateus nos dão a resposta. Segundo Lucas, a “Boa Notícia” é dirigida aos pobres e consiste em “proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista”. O objetivo da missão da Igreja é “libertar os oprimidos” e “proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4,18-19). Mateus, por sua vez, afirma que, para Jesus, o sinal da sua messianidade está exatamente nisso: “aos pobres é anunciada a Boa Notícia” (Mt 11,5). Fica, pois, evidente que a essência da missão da Igreja é, pela palavra e pela ação, contribuir para a libertação dos pobres e dos oprimidos. O restante deve ser apenas consequência disso. Portanto, entre a opção preferencial pelos pobres e a missão da Igreja há um vínculo indissolúvel. Separar as duas coisas é o mesmo que diluir o essencial da missão. Não por acaso o papa Francisco voltou a nos relembrar recentemente este aspecto (EG, 197), que estava sendo sepultado por uma Igreja Católica, que tinha decididamente se voltado para um estilo direitista e ultraconservador durante o pontificado de João Paulo II e Bento XVI. Há razão, pois, a CNBB quando afirma que “o caminho da redenção está assinalado pelos pobres” (Estudos 107, nº 153).

O segundo aspecto importante da missão, assinalado pelo texto de Marcos, é o fato de que a Igreja precisa pensar a missão como ação destinada ao mundo inteiro. Isso significa que o anúncio da Boa Notícia aos pobres deve chegar a todos os cantos da terra. A missão da Igreja deve ser tão marcante e impactante, a ponto de ressoar em todos os lugares de nosso planeta. Este aspecto supõe uma Igreja ousada, corajosa, que não fique trancada dentro dos templos (Jo 20,19), com medo de ser contaminada ou perseguida. Supõe uma Igreja profética, que não aceita fazer pactos com os ricos e poderosos desse mundo, mas que se declara e assume com coragem a causa dos pobres, denunciando os ricos (Lc 6,24-25) e os exploradores dos pobres (Tg 5,1-6). Uma Igreja “frouxa”, medrosa, comprometida com os ricos e poderosos não é e nunca será missionária.

O terceiro aspecto da missão evidenciado por Marcos tem a ver com os destinatários: o anúncio da Boa Notícia deve ser dirigido a toda a humanidade. Todos os homens e todas as mulheres têm o direito de receber da Igreja este anúncio. E não é preciso que se “convertam” ao catolicismo. Em suas próprias culturas, em suas próprias religiosidades, em suas situações concretas, os povos e as pessoas têm o direito de receber da Igreja o testemunho de uma opção firme e decida em favor dos pobres. Este é um tipo de anúncio que todo mundo entenderá, independentemente de sua língua e de sua cultura. E é isso que falta à Igreja, especialmente à Igreja Católica. Ela não consegue sinalizar para a humanidade que está decididamente do lado dos pobres, combatendo toda forma de opressão e promovendo a libertação integral das pessoas e dos povos. Daí o fracasso da sua missão nas mais diversas partes do mundo, inclusive nos países do hemisfério sul, uma vez que falar aqui de cristianismo, de Igrejas, é o mesmo que falar de colonialismo. E as pessoas mais inteligentes, em número cada vez maior, que habitam o sul do planeta, sabem muito bem o que significou para seus países, para suas culturas e para seus povos o colonialismo implantado pelos países “cristãos”.

E não estou dizendo isso por acaso. Todos sabemos que a partir do momento em que a Igreja, contrariando a vontade de Jesus, começou a imitar e a copiar o estilo dos poderosos deste mundo (Mc 10,42-44), ela passou a entender a missão como “plantatio ecclesiae”, ou seja, como mero transplante do estilo europeu de Igreja para as demais regiões do mundo. Fazer missão, missionar, era o mesmo que impor às demais culturas a religião católica. A missão consistia em destruir e eliminar por completo as culturas, tidas como idolátricas, selvagens e pagãs, impondo a ferro e fogo o catolicismo. Foi o que aconteceu, por exemplo, na América Latina, ainda hoje marcada pela violência e pelos massacres praticados contra os indígenas pelos conquistadores espanhóis e portugueses, em nome da fé católica.

Lamentavelmente a maioria dos bispos e dos padres ainda entende a missionariedade da Igreja nesta perspectiva colonialista. Acreditam piamente que fazer missão é o mesmo que fazer proselitismo, ou seja, converter o maior número possível de pessoas para o catolicismo. A maioria deles não tem presente a perspectiva bíblica da missão, sobretudo no que diz respeito à questão do seu significado como anúncio de uma Boa Notícia para os pobres e oprimidos. Várias vezes, em reuniões de bispos, pude escutar alguns deles questionando o modo de evangelizar de instituições como o CIMI e a CPT, que optam pelo diálogo com as culturas e não pelo proselitismo barato. Esses bispos são do parecer que se deve chegar nesses espaços fazendo proselitismo, ou seja, convertendo de qualquer jeito ao catolicismo as pessoas que ali estão. Minha posição foi sempre a de que esse modo de “evangelizar” é de grupos fundamentalistas cristãos e não de verdadeiros discípulos de Jesus.

Talvez ainda precisamos aprender com os grandes santos em que consiste realmente a missão. Lembro-me, neste instante, de Charles de Foucauld, cuja vida foi um mergulho profundo no escondimento e no silêncio. Mas duvido que alguém tenha sido mais missionário do que ele. O irmão Carlos de Jesus entendeu, como santa Teresinha do Menino Jesus, que a missão é essencialmente amar o próximo e não fazer proselitismo. Por isso não tinha medo de dizer que ele estava ali no deserto não para converter os tuaregues, mas para compreendê-los. Tinha a convicção, dizia em 1905, que falar de Jesus para eles significaria afugentá-los. Não que o nome de Jesus, por si só, assustasse os mulçumanos, mas a associação que eles faziam de Jesus com os bárbaros e violentos europeus cristãos. De fato, naquele mesmo período a França dominava a região e praticava as maiores barbaridades contra os nativos, tratando-os como escravos e como objetos quaisquer. Para o irmão Carlos, numa situação como essa, bastava que os tuaregues sentissem que ele era apenas seu amigo e seu serviçal. Isso já era missão, já era evangelização.

“O amor é o meio mais poderoso de atrair o amor, porque amar é o meio mais poderoso de fazer-se amar” (Charles de Foucauld). Assim, continua o irmão Carlos de Jesus, a melhor forma de realizar a missão da Igreja é amando, mesmo sem dizer uma palavra: “sem nunca dizer-lhes uma palavra de Deus, nem de religião, sendo paciente como Deus é paciente, sendo bom como Deus é bom, amando, sendo um irmão cheio de ternura, e rezando”.

Faço votos de que o mês missionário nos ajude a entender tudo isso. Faça-nos perceber que a missão não é algo a mais a se fazer, uma pastoral a mais na Igreja, mas uma dimensão que deve perpassar toda a vida da Igreja. Faça-nos entender que missionar não é fazer prosélitos, mas anunciar a Boa Notícia da libertação dos pobres e oprimidos a todos os homens e mulheres da Terra. E acima de tudo nos faça entender que “a Igreja não é o centro. Cristo é o centro!” (Estudos da CNBB 107, nº 148). E por essa razão é indispensável “passar de atitudes fechadas à formação de uma nova cultura, que constrói cidadania no diálogo e que não tem medo de acolher o que o outro, o diferente, tem a oferecer” (Ibid., nº 157).

A missão, quando entendida desta forma, faz a Igreja deixar de se um amontoado de delirantes alienados, carolas e de beatos para ser uma Igreja laical, isto é, uma Igreja comprometida em testemunhar Jesus Cristo “em todas as circunstâncias, no interior da comunidade humana, tão marcada por dinâmicas excludentes, indiferenças, buscas desenfreadas de consumo e satisfação” (Ibid., nº 163). Quando se entende a missão na perspectiva bíblica a Igreja deixa de ser “um clube de eleitos” (Ibid., nº 146), uma “alfândega controladora da graça de Deus” (EG, nº 47), para ser “uma Igreja pobre, para os pobres, com os pobres e os que se encontram nas periferias existenciais” (Estudos da CNBB 107, nº 151).