quinta-feira, 12 de junho de 2014


Nova tentativa de assassinato da Teologia da Libertação

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

                A Teologia da Libertação (TdL) foi gestada na 2ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (CELAM), realizada em 1968 em Medellín, na Colômbia. Naquela ocasião os bispos do nosso continente tentaram aplicar o Concílio Vaticano II à realidade que marcava a vida dos nossos povos e dos nossos países. Logo depois, a TdL foi sistematizada pela obra de Gustavo Gutiérrez e de outros teólogos, os quais tentaram fazer uma reflexão teológica que desenvolvesse a intuição de Medellín, que era centrar a sua atenção sobre o ser humano do continente, frustrado em suas legítimas aspirações, devido às enormes injustiças e à opressão que assolavam os diversos países.

                Depois de alguns anos de aceitação e de esforço para traduzir na prática as suas intuições, a TdL passou a ser incompreendida e perseguida. Isso aconteceu de modo particular a partir de 1978, com o início do pontificado do polaco Wojtyla. Este papa, assessorado por uma Cúria ultraconservadora, foi podando sistematicamente e cruamente todas as iniciativas da Igreja da Libertação. Censurou e até cassou alguns dos mais renomados teólogos da libertação, nomeou bispos tradicionalistas e perseguiu aqueles que tinham desenvolvido em suas dioceses uma pastoral da libertação. Esta política continuou no pontificado do alemão Ratzinger. Com a chegada do papa Francisco houve uma diminuição da perseguição, mas ainda existem resquícios de tentativas de assassinato da TdL.

                A mais recente tentativa de assassinato aconteceu poucos dias atrás. Segundo informação do site do Instituto Humanitas da Unisinos, os membros da presidência do CELAM, em sua visita anual à Santa Sé, afirmaram em entrevista que a TdL está “muito velha, se não é que já está morta”. Embora tenha reconhecido os esforços dos teólogos da libertação, o presidente do CELAM, dom Carlos Aguiar Retes, disse que depois da TdL “temos uma reflexão teológica mais sapiencial” que abandonou a luta de classes e a confrontação entre ricos e pobres. Com estas afirmações o ilustre prelado, presidente do CELAM, tentou desacreditar a TdL: ela está velha ou morta e não é uma teologia “sapiencial”.

                Os membros da presidência do CELAM, resquícios de um episcopado alinhado com a Cúria Romana de Wojtyla e Ratzinger, ainda tentam sufocar uma teologia original, autêntica e que incomodou muita gente, especialmente os empacotados de roxo e os purpurados que frequentavam as luxuosas casas e as cozinhas das “raposas” (Lc 13,32) que patrocinaram a opressão, a injustiça e a miséria em nosso continente.

                Mas um simples olhar mostra que a TdL não morreu e nem envelheceu. Ela continua nova e vigorosa, antes de tudo no legado que nos foi deixado por pastores como Oscar Romero, Dom Hélder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Pedro Casaldáliga e Dom Angélico Sândalo Bernardino, só para citar alguns nomes. O legado desses pastores da libertação ultrapassou as fronteiras da própria Igreja Católica Romana e as fronteiras do tempo. Hoje, no mundo, centenas de milhares de mulheres e homens continuam a testemunhar a sua fé, graças ao testemunho desses pastores da libertação. Milhares de iniciativas surgiram por conta da ação pastoral desses bispos católicos e continuam existindo e agindo, apesar dos ventos que sopram em sentido contrário.

                Também alguns bispos e pastores de outras Igrejas irmãs, como a Igreja de Confissão Luterana, a Igreja Anglicana, a Igreja Metodista, a Igreja Presbiteriana, descobriram na TdL o caminho para uma ação mais incisiva em nosso continente e no mundo. Não posso deixar de lembrar a figura de dois representantes destas Igrejas: o pastor presbiteriano Jaime Wright e o pastor luterano Milton Schwantes, verdadeiros ícones das Igrejas da Reforma no Brasil e que encontraram na TdL o caminho para a evangelização. Ainda hoje homens e mulheres dessas Igrejas, teólogas e teólogos, pastoras e pastores desenvolvem suas atividades de anúncio da Boa-Notícia tendo como ponto de apoio a TdL. Sem falar depois nas inúmeras iniciativas ecumênicas ainda hoje em pleno vigor e que tiveram o seu berço na TdL. Basta lembrar, por exemplo, o Centro de Estudos Bíblicos (CEBI) com a sua vasta produção de subsídios para a animação bíblica popular. Por fim, cabe lembrar também a maravilhosa experiência das Comunidades Eclesiais de Base, expressão máxima de uma Igreja que bebe na fonte da libertação. Alguns tentam hoje minimizar essas comunidades, mas elas continuam aí, existindo como jeito novo de ser Igreja. No último Intereclesial, realizado no início deste ano em Juazeiro do Norte (CE), a terra do Padim Ciço, elas mostraram a sua força e a sua pujança.

                No campo da reflexão teológica, depois da chegada do papa Francisco, houve uma retomada da TdL, até então sufocada e proibida pelos monsenhores curiais. O pai da TdL, Gustavo Gutiérrez, publicou recentemente com o Cardeal Gerhard Ludwig Müller , atual Prefeito da Congregação Vaticana para a Doutrina da Fé, um texto no qual retomam os principais elementos dessa teologia. O livro, originalmente escrito em alemão, foi traduzido para o português e publicado no início deste ano por Edições Paulinas, com o título: Ao lado dos pobres. Teologia da Libertação. Muito significativa a intervenção do Cardeal Müller, especialmente no capítulo quatro do livro, no qual o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé fala das controvérsias em torno da TdL. Antes de tudo o Cardeal Müller reconhece a sua legitimidade, afirma a sua necessidade para a Igreja e diz tratar-se de uma autêntica teologia. Lembra que a teologia latino-americana ajudou a corrigir a “clássica doutrina social da Igreja”, construída a partir de um dualismo entre mundo natural e mundo sobrenatural.

O Cardeal Müller reconhece também a legitimidade da mediação socioanalítica, lembrando inclusive que esse tipo de recurso não é novidade na teologia católica. Grandes teólogos, como Tomás de Aquino, já tinham utilizado tal método, uma vez que é impossível fazer teologia abstrata, ou seja, sem partir da realidade. O Cardeal chega mesmo a reconhecer a importância da mediação da análise marxista e até da referência à luta de classes, lembrando-nos que o marxismo não deve ser confundido com o totalitarismo ideológico leninista e stalinista. Aliás, diga-se de passagem, foram os teóricos do capitalismo, que não conheciam o pensamento marxista, que confundiram Marx com Lênin e Stalin. Para o Cardeal Müller, ao mencionar a luta de classes, a TdL não entende desenvolver uma guerra de eliminação de uma classe, mas apenas lembrar que “a história não se desenvolve a partir do desenvolvimento harmônico de suas virtualidades, mas mediante o antagonismo de princípios e de interesses opostos”. A menção à luta de classes é um convite a participar “na luta da graça contra o pecado e, concretamente, também, de uma encarnação da salvação nas estruturas sociais promotoras da vida e uma superação do pecado e de sua objetivação em sistemas exploradores”. Isso porque “a graça e o pecado não existem simplesmente de modo puramente idealista e espiritualista em si, mas sempre unicamente junto com sua encarnação e materialização nas condições de vida humanas”.

A fala da presidência do CELAM tem um lado positivo: mostra que no momento, em Roma, há um clima de distensão, de mais respeito e de mais diálogo. Até alguns meses atrás seria impensável que bispos discordassem abertamente do pensamento do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Tal discordância era punida severamente, mesmo que fosse apenas com o puro isolamento e descrédito dos interessados. A presidência do CELAM ousou discordar do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que, como vimos, tem outro olhar sobre a TdL. E isso é positivo.

Porém, é lamentável que tenham tentado, a partir de Roma, decretar a caduquice e a morte da TdL; tenham efetivado mais uma tentativa de assassinato da teologia latino-americana. É lamentável porque foram essas tentativas que fizeram a Igreja Católica regredir em nosso continente, perdendo a credibilidade e um número cada vez mais expressivo de fiéis, como têm apontado as recentes pesquisas, mesmo que os eclesiásticos queiram minimizar esses dados. Na Europa, onde a TdL nunca foi admitida, o catolicismo agoniza, a Igreja envelhece rapidamente, tornando-se cada dia mais feminil e senil. Os prelados do CELAM deveriam aprender com o europeu Cardeal Müller, o qual afirma no texto acima mencionado que a Igreja, tanto no nosso continente como no mundo inteiro, “não pode renunciar à continuação e ao uso da Teologia da Libertação”, pois “a pretensão metodológica da Teologia da Libertação, de empregar uma práxis transformadora, outra coisa não é senão a nova formulação do evento original da teologia em absoluto”. Por isso, no “contexto regional e para a comunicação teológica mundo afora, a Teologia da Libertação é imprescindível” (p. 109).

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