domingo, 27 de abril de 2014

Teologia e práxis


TEOLOGIA DO PRAZER

José Lisboa Moreira de Oliveira, filósofo e teólogo
Ana Márcia Guilhermina de Jesus, psicóloga e militante cristã


Acaba de sair pela Paulus o nosso mais recente livro. Trata-se da Teologia do Prazer. O tema do prazer ainda é considerado um grande tabu pela maioria dos cristãos. Embora a Bíblia judaico-cristã veja esta questão com otimismo, a influência maniqueísta, infiltrada nas comunidades cristãs primitivas, terminou por se impor, levando o cristianismo a ver o prazer com bastante pessimismo. Atualmente, mesmo com os grandes avanços provocados por fatos como o Concílio Vaticano II e as descobertas científicas, a perspectiva ainda é bastante negativa. Nas Igrejas cristãs o tema não é tratado explicitamente, a não ser em certas ocasiões e quase sempre para combatê-lo.

Não têm faltado esforços por parte de algumas pessoas e por parte de alguns teólogos no sentido de aprofundar a questão numa perspectiva mais positiva, porém quase sempre na ótica da moral. Mas, apesar desses esforços, o prazer ainda é visto de forma muito negativa e nunca mereceu um tratado específico de teologia. Isso levou um franciscano, teólogo, bispo e psicólogo, Dom Valfredo Tepe, a pedir, no finalzinho do século passado, que os teólogos pensassem numa “teologia do prazer”.

            Nós resolvemos acolher o convite de Dom Valfredo Tepe e nos atrevemos a refletir sobre o assunto. Depois de quase dois anos de pesquisas, leituras e estudos, produzimos um texto que agora chega às mãos dos leitores através da Editora Paulus. Temos consciência de que não esgotamos o assunto, mas esperamos que a nossa iniciativa estimule outros estudiosos cristãos a aprofundarem ainda mais a questão, ajudando suas Igrejas a reverem suas posições e a se abrirem mais à positividade da experiência do prazer.

            O nosso estudo começa com uma análise do conceito e do sentido do prazer. Consideramos fundamental iniciar nossa reflexão apresentando as bases científicas do prazer. Uma teologia do prazer precisa começar com a constatação de que tal sensação ou experiência foi colocada no ser humano pelo Criador. As ciências, de modo particular a Psicologia e a Neurociência, ao desvendarem o mistério do prazer nos revelaram a criatividade divina que, ao “modelar” (Sl 139,13-15) a pessoa humana, dotou-a de tão complexo dinamismo. As ciências nos ajudam a perceber que o prazer faz parte da natureza humana, assim como foi pensada, sonhada e criada por Deus.

Na segunda parte do nosso texto apresentamos o ensinamento bíblico sobre o prazer. Não foi fácil abordar esta questão, dada a escassez de pesquisas e publicações específicas sobre o assunto, especialmente aqui no Brasil. As pesquisas que fizemos apontam inicialmente que há na Bíblia uma concepção positiva do prazer, embora não faltem textos que alertam sobre o risco de uma busca de prazer que desumaniza. Porém, a Palavra de Deus não demoniza a experiência prazerosa. Pelo contrário, convida o ser humano a viver prazerosamente sob a guia e proteção divinas. Para evidenciar este aspecto positivo, antes de mencionar os prazeres humanos recomendados pela Bíblia, falamos dos “prazeres divinos”. Algo muitas vezes inédito, já que o cristianismo do “ascetismo mórbido” (Tepe) nos acostumou com a imagem de um Deus sempre irado e irritado com a possibilidade de um ser humano alegre e feliz. Somente depois de falar do prazer como algo positivo é que apresentamos algumas indicações bíblicas acerca de um tipo de prazer que pode alienar e desumanizar.

            Após apresentar as bases científicas do prazer e a visão bíblica sobre o tema, fazemos uma reflexão sobre a forma como o prazer foi visto ao longo da história da Igreja. Mostramos como o cristianismo, de seguimento prazeroso de Jesus, se transformou na religião da abolição do prazer. E isso se deu pela incursão do dualismo grego e do maniqueísmo maledicente nas comunidades cristãs. Além disso, refletimos sobre a relação que se criou entre prazer, sexo e pecado, fazendo com que as Igrejas introduzissem regras bem rígidas a este respeito, as quais passaram a funcionar como verdadeiros “quebra-molas” que visam frear o gozo e o prazer. Depois dessas observações mostramos que, em toda essa história, a mulher pagou um preço amargo, uma vez que ela foi considerada o símbolo do prazer degenerado. Afirmamos que todas essas coisas transformaram o cristianismo em uma experiência triste e assustadora e que precisamos continuar vigilantes, uma vez que no atual contexto estão retornando formas cristãs dualistas e maniqueístas.

            No último capítulo do livro apresentamos algumas afirmações teológicas acerca de uma vida cristã prazerosa. Insistimos na necessidade de vermos o prazer como uma realidade plenamente divina e plenamente humana e, de consequência, olharmos para o cristianismo como mística prazerosa. Mas para que isso aconteça será indispensável repensar a relação entre seguimento de Jesus, prazer e ascese. Embora parte essencial do discipulado, a ascese precisa ser revista, de tal modo que não tire do cristianismo a sua dimensão gozosa. Isso significa que a vivência cristã do prazer inclui um processo de discernimento e uma educação para a responsabilidade, de modo que se possa falar de uma vida prazerosa ecologicamente correta, entendo por ecológico um estilo de existência que humanize sempre e cada vez mais.

            O nosso estudo se conclui com uma reflexão acerca da necessidade de que as Igrejas renunciem à pretensão de querer controlar, a todo custo, a vida das pessoas. Elas precisam mudar de pedagogia, uma vez que a atual pedagogia do controle e da imposição não funcionou e terminou por lançar os fiéis nas mãos da “indústria do prazer”.

            O nosso texto destina-se a todos os cristãos e a todas as cristãs de todas as Igrejas, sem exceção, e que queiram aprofundar essa temática tão vital e tão marcante para a vida humana. Destina-se também a todos os homens e a todas as mulheres de boa vontade que, embora não professem a fé cristã, desejam ter uma compreensão mais positiva do tema do prazer na perspectiva do cristianismo. Mesmo consciente de que não exaurimos a temática proposta, optamos por manter o simples título “Teologia do Prazer”, sem mais substantivos ou adjetivos qualificativos. Com isso queremos ressaltar o caráter teológico do tema, diante de todo o desgaste a que foi submetida a questão do prazer dentro do cristianismo e ao longo do séculos.

            Fazemos votos de que este livro toque o coração de muitas pessoas, desperte-nos para a beleza do prazer, estimule em todos nós uma vida prazerosa responsável e solidária, e suscite em muitas outras pessoas o desejo e a vontade de aprofundar ainda mais esta temática tão bonita e profundamente cristã. E se você estiver de acordo com isso, adquira o livro, estude-o e divulgue-o entre os seus amigos e amigas. Obrigado!

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Mensagem pascal


Ressurreição:
Enxergar sinais de vida em meio a sinais de morte

Ana Márcia Guilhermina de Jesus
Bacharela em Psicologia e militante cristã


“Então Pedro e o outro discípulo que Jesus amava, saíram e foram ao túmulo. Os dois corriam juntos. Mas o outro discípulo correu mais depressa do que Pedro e chegou primeiro ao túmulo. Inclinando-se, viu os panos de linho no chão, mas não entrou. Então Pedro, que vinha correndo atrás, chegou também e entrou no túmulo. Viu os panos de linho estendidos no chão e o sudário que tinha sido usado para cobrir a cabeça de Jesus. Mas o sudário não estava com os panos de linhos no chão; estava enrolado num lugar à parte. Então o outro discípulo, que tinha chegado primeiro ao túmulo, entrou também. Ele viu e acreditou” (Jo 20,3-8).

O outro discípulo, cujo nome não é citado, embora se acredite que era João, representa, como dizia santo Inácio de Loyola, outros tantos discípulos e discípulas que na época, certamente, foram ao túmulo, e, na contemporaneidade, continuam indo aos túmulos, com a esperança de encontrar sinais de vida, porque acreditam na força do sangue derramado, da vida sacrificada.

“O outro discípulo, que tinha chegado primeiro, entrou no túmulo” (Jo 20,8). Que significa entrar hoje no túmulo? Que significado traz para nós o túmulo? Pode-se dizer, em primeiro lugar, que entrar no túmulo significa perceber e acreditar que os corpos mortos, massacrados, arrastados e crucificados carregam consigo a vida, a esperança, a luta do povo, o desejo do povo, o grito do povo; o grito por libertação, por transformação, pela paz. Entrar no túmulo significa lutar contra a morte; coragem de enfrentar as dores e os sofrimentos, as decepções e tristeza que a morte traz. Em segundo lugar, o túmulo significa fechamento, desespero, medo, angústia, tristeza, vazio, silêncio, decepção, ansiedade, depressão. Significa violência, tirania, massacre, guerra, desumanização, corrupção, bandidagem, autoritarismo, terrorismo do poder.

Tendo presente a simbologia do túmulo, e como esses símbolos estão carregados de sentimentos, é importante fazer uma análise dos significados de cada um deles diante dos sinais trágicos da morte. No caso de Jesus, os seus gritos de dores, o seu gemido de sofredor chegaram aos ouvidos dos que o seguiam por toda parte. O seu sangue derramado chocou o coração daqueles que o amavam, ficando gravado na mente e no coração. Sendo eles dotados de sensibilidade, sentiram na pele o que Jesus sofreu. Diante desse momento de dor, angústia, sofrimento, tristeza, desolação, desesperança, decepção, depressão, seus amigos e amigas foram movidos por um sentimento de compaixão e de misericórdia.

Comovidos por essa mistura de sentimentos, podemos, então, imaginar quanto foi difícil para as discípulas e os discípulos sair de casa, sair desse desconforto. Hoje, quando as discípulas e os discípulos continuam contemplando os túmulos de morte e não conseguem, impulsionados pelo amor, ver o que está além da morte, além dos sepulcros, além dos corpos sem vidas, há o risco de permanecer com “as portas fechadas” (Jo 20,19), trancafiados por medo. No caso dos discípulos, esse medo está relacionado a um cadáver que fez parte da vida e da história deles; medo de perder um vínculo que foi criado com a vítima. Medo do abandono, medo de ter que enfrentar a realidade sozinhos, ou seja, sem o Mestre. Medo de ter que passar pela dor da morte e do sofrimento, a exemplo dele. Medo da prisão, da tortura e da morte.

Psicologicamente falando, a força que esses medos produzem nos discípulos é a mesma força da morte que impede hoje o desabrochar da vida, leva ao fechamento, ao esvaziamento, ao egoísmo, à resistência e à recusa do outro. Os discípulos desistem da luta, da caminhada e permanecem com as portas fechadas, com medo do poder da morte, do poder político e religioso. Hoje não é diferente. Mas alguém precisa ter a coragem de enfrentar o sistema, de lutar contra os ditadores, contra o poder hegemônico, contra o poder político e religioso que estão preocupados com o dinheiro e, por isso, fazem aliança com latifundiários, com empresários loucos, insanos, esquizofrênicos, psicopatas, que querem o crescimento econômico a todo custo. Por isso derramam sangue inocente, massacram, usando todo tipo de violência, de agressão, matando pessoas sem nenhum escrúpulo.

Dentro do contexto da morte de Jesus, somente a ousadia de uma mulher, que amou e fez experiência profunda desse amor, que tocou e foi tocada por ele, pôde romper o fechamento e o medo e anunciar a vitória da vida sobre a morte (Jo 20,18). Ainda hoje são as mulheres que quebram os grilhões da escravidão, as algemas da opressão, rasgando o ventre da libertação pela força da vida, que sempre está em seu útero.

Movida por essa força, Maria de Magdala corre com coragem, contra tudo e contra todos. Não deixa o medo sufocar o grito que está entalado na garganta: sai e vai ao túmulo quando ainda era noite (Jo 20,1), ou seja, quando ainda não existia nenhum sinal de esperança. O sentimento de tristeza e de dor está ainda impregnado em seu corpo e em seu coração. Mas ela vai; vai porque seu corpo pede, anseia pela vida. Vai de madrugada, ao amanhecer, porque dentro dela freme a vida. Ela, por ser mulher, tem dentro de si o poder de resgatar a vida; tem um útero gerador de vida, de luz, de sabedoria, de esperança. Por carregar em seu corpo esses sinais visíveis de humanidade, de solidariedade, de justiça, ela vai ao túmulo, porque acredita que o seu Amado está vivo, acredita que o autor da vida vive. Escutou com a alma e com o coração o que Jesus disse: “eu vou morrer, mas ressuscitarei”.

A força da ressurreição passou pelas suas entranhas, pelo mais profundo do seu ser e fez dela uma mulher capaz de acreditar na vida após a morte. Pela força da palavra do Mestre ela vai cheia de esperança, de emoção, em busca dos sinais de vida. E quando chegou ao túmulo, ela viu que a pedra tinha sido retirada. Então, sai correndo para levar a boa noticia (Jo 20,2). E disse a João e a Pedro: “Tiraram a pedra do túmulo do Senhor e não sabemos onde o colocaram” (Jo 20,2).

Tiraram a pedra. O que significa para quem fez experiência profunda do amor, esse símbolo do “tirar a pedra”?  Significa para quem toca e é tocado pelo amor, pela graça desse amor, que não existem obstáculos, não existem desafios insuperáveis. Por isso, depois de constatar que a pedra tinha sido removida, Maria de Magdala diz com a força de sua palavra: “a vida venceu a morte. Jesus ressuscitou, ele está vivo!” (Jo 20,18). Com toda a energia do cosmos, a vida pulsa, vibra no coração dessa mulher amada.

Portanto, quem ama e faz experiência do amor, quem toca o amor e é tocado por ele, não fica parado, contemplando mortos, buscando mortos que não já estão vivos, mas corre para anunciar a vida, corre para levar a alegria da ressurreição. Sua vida flui, seu corpo sente a energia do amor e corre com alegria para anunciar a todos o gáudio da ressurreição, as maravilhas do amor.

O anúncio de Maria Madalena foi tão profundo que os discípulos acreditaram em sua palavra e foram ao túmulo. Porém, somente João, “o outro discípulo”, viu e acreditou (Jo 20,8). Por que Pedro não acreditou? Porque somente um coração cheio de amor e de compaixão consegue acreditar que existem sinais de vida num túmulo, mesmo quando isso não é perceptível. E Pedro ainda não estava tomado por esse amor e por essa compaixão (Jo 21,15-19).

Participar do mistério da ressurreição, ser tocado pelo corpo do ressuscitado, é um processo de humanização que transforma e torna quem foi tocado, mais sensível, solidário, e misericordioso. Tocar e ser tocado pela graça da ressurreição faz do ser humano um ser divino, um ser que transcende. É, a partir da experiência de tocar e de ser tocada pelo amor, que a pessoa amada deixa emanar do seu corpo a força da graça, a força da vida que explode no grito exultante, anunciando a vida e a ressurreição. É no amanhecer desse amor que a pessoa amada acredita no amanhecer dum novo mundo, na transformação do ser humano; acredita com todas as forças que existem sinais de vida lá onde existem somente sinais de morte.

E da mesma forma que os discípulos e as discípulas escutam o Mestre dizer em seu ouvido que vai ressuscitar, com a mesma intensidade escutam o grito forte da humanidade sofrida, o grito de milhares e milhares de pessoas que vivem em situações que levam à morte, e enxergam os sinais de vida presentes no mundo dos mortos. Movida pela mesma compaixão, ternura, e sensibilidade de Jesus ressuscitado, a pessoa vai ao encontro das demais, descobrindo os sinais de vida, lutando para que todo ser humano tenha uma vida digna, justa e fraterna. Lutando para que todos, sem exceção, participem da Páscoa do Senhor, vivam o mistério da alegria, participem da graça divina, sintam-se tocados em seus corpos pelo toque do amor que gera vida pela própria explosão do amor, que espalha raios de luz, de ressurreição e de esperança. Amém.

sábado, 12 de abril de 2014

Tempo litúrgico


Dimensão política do Tríduo Pascal

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor, conferencista e professor universitário

            Dentro de poucos dias estaremos celebrando a festa da Páscoa cristã. Desde a mais remota antiguidade a Páscoa cristã é a celebração do mistério da ressurreição de Jesus. Porém, a liturgia pascal, desde os primórdios, uniu a celebração da ressurreição de Jesus à sua paixão e morte. Num primeiro momento pode parecer estranho que a celebração pascal, enquanto festa da vida, esteja profundamente conectada com a paixão e a morte de Jesus. Mas nisso não há nenhum exagero e nem tão pouco algo fora de lugar.

            A ressurreição acontece porque antes houve paixão e morte. Paixão entendida como a fidelidade de Jesus ao projeto do Pai até as últimas consequências (Mc 14,34-36). Morte porque aquele galileu se tornara muito incômodo para o sistema religioso e político da época e era preciso eliminá-lo de uma só vez e para sempre (Jo 5,18). Torturado, e depois eliminado da pior forma possível para aquela época, Jesus ressuscita pelo poder de Deus (At 2,24). Sua ressurreição foi a resposta dada pelo Pai aos seus torturadores e aos seus algozes. Eles pensavam que tinham eliminado para sempre a sua memória, mas, de repente, Jesus ressuscita glorioso e torna-se mais incômodo e mais vivo do que antes, para desespero daqueles que o tinham torturado e matado (Mt 28,11-15; At 5,21-42).

            Precisamos eliminar os resquícios de certa cristologia ainda presente em determinados ambientes, segundo a qual Jesus teria passado pela tortura e pela morte para aplacar a ira de seu Pai. Deus teria ficado muito zangado com os pecados da humanidade e exigia uma satisfação, uma reparação à altura. E para realizar tal reparação teria decidido desde toda a eternidade punir o próprio Filho, de modo que sua ira fosse aplacada. Chegou-se a atribuir a Santo Anselmo esse absurdo. Porém, a teoria da expiação não passa de uma falsa interpretação do pensamento deste grande teólogo. Na verdade o que Anselmo quis afirmar, com sua teoria, foi a plena e absoluta liberdade de Jesus e a plena e absoluta acolhida da decisão de Jesus por parte do Pai. O Filho decide ir até o fim e não recuar, mesmo diante da ameaça de morte. O Pai decide acolher a decisão do Filho até as últimas consequências. Não interfere e não impõe ao Filho um meio-termo, um compromisso para salvar a própria pele, como, às vezes, costumam fazer certos pais quando seus filhos são ameaçados.

            A superação desse tipo de cristologia do conformismo do Filho e da brutalidade sanguinária do Pai é de fundamental importância para não obscurecermos e não negarmos as devidas responsabilidades. As lideranças religiosas judaicas e o império romano tiveram, sim, a sua responsabilidade na tortura e na morte de Jesus (Jo 19,11). O que aconteceu não foi fruto do acaso ou de um plano previamente estabelecido por Deus e do qual Jesus não pôde fugir. O que aconteceu foi um conluio entre o poder religioso e o poder político que predominavam na Palestina daquela época. O sistema religioso e o sistema político de então torturaram e mataram Jesus. É claro que isso não nos dá o direito de acusar todos os judeus de todas as épocas pelo assassinato de Jesus, como tristemente e lamentavelmente fez a Igreja Católica até pouco tempo atrás e como levianamente continuam fazendo alguns católicos de direita. Não podemos nem mesmo condenar todos os romanos daquela época. Mas é preciso deixar claro que a morte de Jesus não foi um desejo do Pai e do qual o Filho não teve como escapar. Dizer que tudo já estava previsto é transformar a fé cristã em puro fatalismo e em mero capricho de Deus. E isso seria um tremendo absurdo.

            A paixão, a morte e a ressurreição de Jesus inspiraram homens e mulheres de todos os tempos. Essas pessoas, animadas pela fé em Cristo, assumiram corajosamente o projeto de Deus até as últimas consequências. Desde os primeiros mártires do cristianismo até os mais recentes como Santos Dias, Margarida Alves, Dorothy Stang, Josimo e Oscar Romero, homens e mulheres seguiram em frente e não arredaram o pé diante das ameaças dos poderosos, prepotentes e arrogantes. E faziam isso porque estavam convencidos de que entre paixão, morte e ressurreição existe uma profunda ligação. Estavam convencidos de que, mesmo triturados e assassinados pelos sistemas religiosos e políticos, continuariam vivos, ressuscitados pelo poder de Deus. Famosa é a frase de Dom Oscar Romero: “Se me matam, vou ressuscitar na luta do meu povo”.

            Meditar nestes termos sobre a paixão e a morte de Jesus é essencial, uma vez que corremos o risco de cultuar um Jesus açucarado, irreal e inexistente. De fato, ainda hoje não são poucas as pessoas e os movimentos de Igreja nos quais Jesus é visto sem nenhuma conexão com a sua história, com os fatos que antecederam a Páscoa. Isso leva a um cristianismo aguado e descomprometido, que se recusa a ver a realidade e se distancia propositadamente de um compromisso sério com a luta pela justiça e pela construção de um mundo mais humano e saudável. Nós cremos firmemente na ressurreição, no Cristo glorioso que venceu a dor, o sofrimento e a morte (Mc 16,6). Mas não podemos imaginar um Cristo ressuscitado diferente daquele que caminhou pelas estradas da Galileia e que enfrentou a paixão e a morte por causa da sua fidelidade ao projeto do Pai e por causa de seu amor pelo povo. As narrativas das aparições do Ressuscitado, mais do que evidenciar a reanimação de um cadáver – como se Jesus tivesse readquirido o mesmo corpo de antes da morte – querem evidenciar a relação entre o Jesus histórico e o Jesus ressuscitado (Lc 24,39-40; Jo 20,27). Querem mostrar que não é possível adorar o Ressuscitado negando aquele Jesus que caminhou pelas entradas empoeiradas da Palestina, anunciando a libertação aos pobres e oprimidos.

            Neste sentido pode-se e deve-se dizer que o Tríduo Pascal possui uma dimensão política inegável. Celebrá-lo é reconhecer que Jesus, deliberadamente e conscientemente tomou partido, escolhendo ser fiel ao projeto do Pai, o qual incluía uma paixão pelo povo, um anúncio de libertação e uma rejeição radical do projeto do templo de Jerusalém que tinha se corrompido, transformando a religião num “mercado religioso”, num “covil de ladrões” (Jo 2,16). Celebrar o Tríduo Pascal é reconhecer que Jesus rejeitou o projeto político dos romanos, cujos chefes agiam como verdadeiras “raposas” (Lc 13,31-33), fazendo pesar sobre os ombros das pessoas, especialmente dos mais pobres, a tirania e a opressão (Mc 10,42-45).

            Sem essa dimensão política, toda celebração pascal vira uma farsa, um ritual sacrílego que ofende a Deus, porque desprovido de consequências reais para a vida da humanidade. Ainda hoje existem aqueles que querem uma Semana Santa folclórica, com bastante emoção e choro diante de uma estátua de Nossa Senhora das Dores ou de um Senhor dos Passos branco, de olhos e sangue azuis. Mas não querem uma Semana Santa que associe as dores de Maria, mãe de Jesus, às dores de Cláudia Teixeira, negra, pobre, moradora de periferia, brutalmente arrastada e assassinada pela Polícia Militar do Rio. Não querem uma Semana Santa que ouse associar o Cristo amarrado na coluna da flagelação ao jovem negro amarrado a um poste por playboys brancos cariocas, num bairro chique do Rio de Janeiro.

É fácil comover-se diante de estátuas, mesmo que sejam estátuas “sagradas”. Elas estão lá imóveis. Não nos incomodam e não nos desinstalam. Não nos causam problemas, não nos provocam e nem exigem de nós conversão. Mas comover-se diante de estátuas não é cristão, não é evangélico e, de certa maneira, é uma idolatria. Idolatria porque Jesus não quer lágrimas para ele e nem tão pouco para uma estátua sua ou de sua mãe. Não foi isso o que ele disse a algumas mulheres enquanto se dirigia para o Calvário (Lc 23,27-32)? O que ele quer mesmo de nós é uma comoção que se transforme em ação em favor dos que estão oprimidos, sofridos, abandonados e excluídos do direito à vida plena (Mt 25,31-46). Urge, pois, celebrar o Tríduo Pascal com obras e gestos, fazendo o que pediu o papa Francisco na Evangelii Gaudium (EG), ou seja, “tocando a carne sofredora de Cristo no povo” (EG, 24). Se a nossa celebração da Páscoa serve apenas para aderir a uma economia que mata, deixa do mesmo jeito a desigualdade social, ajuda a produzir uma sociedade de “pessoas descartáveis” e contribui para a globalização da indiferença (EG, 53-60), então é uma páscoa consumista, de supermercado, e não a Páscoa de Jesus. Para ser Páscoa de Jesus é preciso que ela não seja uma “espiritualidade do bem-estar”, uma “teologia da prosperidade” alienante, subjetiva, sem compromissos fraternos (EG, 89-90). Para ser a celebração da Páscoa de Jesus ela precisa ser política, ou seja, anunciar um caminho esperançoso e libertador que leve felicidade e alegria aos pobres. Para ser Páscoa de Jesus ela terá que ser uma verdadeira “caravana solidária” (EG, 87).

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Análise de conjuntura


A economia da salvação:
Desdobramentos antropológicos, ecológicos e teológicos da reificação da consciência

Felipe Dittrich Ferreira, antropólogo
Marcos Vinicios de Araujo Vieira, sociólogo

Quando Graciliano Ramos publicou S. Bernardo, em 1934, o moderno capitalismo começava a penetrar no domínio rural nordestino, com conseqüências sociais diversas. No romance, à luz das transformações socioeconômicas em curso, Graciliano narra o drama humano de Paulo Honório — profetizando, ao mesmo tempo, a realidade do homem burguês de nosso tempo. Com sensibilidade embotada e olhar quantificador, Honório decide transformar sua fazenda, S. Bernardo, de modo a adequá-la plenamente à lógica do capitalismo moderno. Buscando ascender socialmente, Honório nada poupou, sacrificando até mesmo suas relações familiares. Ao final, quando tudo em sua vida, incluindo a relação amorosa com Madalena, foi "afogado nas águas geladas do egoísmo", o personagem, num esforço sincero de auto-análise, constata:

Nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins. É a desconfiança terrível que aponta inimigos em toda parte! A desconfiança é também conseqüência da profissão. Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens, uma boca enorme, dedos enormes. (...). Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades monstruosas. A vela está quase a extinguir-se.

(...). Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto, o luar entra por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão.

É horrível! Se aparecesse alguém... Estão todos dormindo.  Se ao menos a criança chorasse... Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que Miséria!

Com a publicação da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, do Papa Francisco, é chegado o momento de levarmos a ilustrativa experiência narrada por Graciliano Ramos mais a sério. Precisamos refletir sobre o tipo humano gerado pelo capitalismo e pensar, em particular, nas repercussões teológicas da adesão desmedida ao universo mercantil. Francisco é enfático ao dizer que o capitalismo, em sua própria raiz, é iníquo, carecendo de orientação antropológica. O sistema capitalista, em outras palavras, trata o homem como coisa entre coisas, não apenas ignorando sua dignidade, mas também embrutecendo-o deliberadamente. Essa denúncia já havia sido antecipada pelo Papa em 2013, durante visita à ilha de Lampedusa, no sul do Itália. Na ocasião, Francisco manifestou solidariedade aos refugiados e imigrantes que se lançam ao Mediterrâneo, em embarcações muitas vezes improvisadas, na busca desesperada por condições dignas de vida. Frente aos destroços de navios naufragados, o Papa não se limitou a solicitar compaixão. Procurou lançar luz sobre aspectos sociológicos do problema, indicando que, em função da arraigada “cultura do bem-estar”, estaria em curso a “globalização da indiferença”:  

Habituamo-nos ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é responsabilidade nossa! (...) A globalização da indiferença tirou-nos a capacidade de chorar.

Ao denunciar este quadro, Francisco nos compele a refletir, sob nova luz, a respeito de um conjunto importante de capacidades humanas, relacionadas, por um lado, ao coração, e por outro, ao entendimento. Está em questão a consciência do homem moderno: seu discernimento, sua sensibilidade, sua forma de relacionar-se. Francisco trata desses temas, no texto mencionado acima, exortando o homem a transformar-se, levando em conta os ensinamentos do Evangelho, ao mesmo em que faz críticas ao sistema econômico em vigor. Parece, portanto, haver forte relação entre os dois temas.

Para compreendermos a conexão entre teologia e economia, para a qual o Papa chama a nossa atenção, parece-nos útil aplicar alguns conceitos da moderna ciência social à reflexão teológica. O conceito de “reificação”, por exemplo, proposto por Lukács, parece iluminar aspectos importantes da situação denunciada pelo Bispo de Roma. Na visão do pensador húngaro, o conceito explicaria traço característico da racionalidade moderna que tende a transformar em “coisas” as mais diversas entidades e relações, desumanizando-as. Já na década de 1920, Lukács assinalava a proliferação desse fenômeno em função do alargamento acelerado da esfera mercantil, dentro da qual relações essenciais passaram a se desenrolar, incluindo a relação dos homens entre si (por meio, sobretudo, do comércio de “mão-de-obra”) do homem consigo próprio (veja-se, por exemplo, a idéia de “capital humano”, desenvolvida pela Escola de Chicago, na década de 1960) assim como do homem com a natureza (transformada em simples fonte de “matérias-primas”).

O desfecho desse processo, na perspectiva lukacsiana, não poderia ser mais sombrio: a própria consciência, que consiste, na linguagem do Concílio Vaticano II, no lugar sagrado de comunicação de Deus com o homem, tende a ser “coisificada”. Esse desfecho tem implicações antropológicas, ecológicas e teológicas que devem ser denunciadas com ênfase. Afastado de Deus o homem se empobrece, preso num círculo vicioso de autorreferencialidade. Colocando-se no centro do universo, por vezes de forma desatenta, o indivíduo reificado transforma as demais pessoas em meios para seus fins particulares, à maneira de um deus frívolo e cruel. Da mesma forma é tratada a natureza, transformada em simples depósito de recursos. Sob o olhar mercantilizado, com efeito, tudo é permitido: vidas podem ser descartadas, pessoas podem ser escravizadas, rios e mares podem ser convertidos em esgotos, florestas podem ser transformadas em dinheiro, ao mesmo tempo em que se admite com naturalidade a criação de animais em larga escala exclusivamente para o abate como se outras espécies não tivessem valor intrínseco. Estamos, em verdade, no reino da completa indiferença, que a Campanha da Fraternidade da CNBB deste ano vem a denunciar, ao menos parcialmente, com o tema do tráfico de pessoas — crime que transforma seres humanos em objetos de lucro e prazer.

Diante desse quadro, contra o qual se insurge ao mesmo tempo a crítica teológica e a sociológica, não cabe dúvida de que somos desafiados a tomar uma decisão fundamental para garantir nossa humanidade, resgatando, ao mesmo tempo, a qualidade da vida em sociedade e as condições de vida na Terra, sob o ponto de vista ecológico. É urgente recuperarmos o discernimento, libertando o inconsciente de fantasias criadas pelo capitalismo e a consciência da lógica calculista hoje imperante. Ao mesmo tempo, devemos refletir sobre a reconstrução da sensibilidade, sobre nossa capacidade de estabelecer vínculos significativos não apenas com outros seres humanos, mas também com Deus, inclusive por meio do “espelho do mundo sensível”, nas palavras utilizadas por São Boaventura para fazer referência à natureza. Não se trata, portanto, de buscarmos apenas a salvação das almas, como se dizia antigamente. É necessário, de fato, salvarmos o mundo, ressacralizando-o. Ao combatermos a reificação, restaurando, pouco a pouco, o sentido das coisas, oxalá possamos dar alguns passos nessa direção.

A história da evolução à qual estamos fazendo alusão não é simples. Já se alegou que a religiosidade foi combatida, ao longo do período moderno, de modo que o homem não pudesse evocar uma fonte alternativa de legitimidade frente a eventuais conflitos com a lei civil. Com relação ao desenvolvimento do capitalismo, embora não seja correto falar num esforço deliberado em contraposição à religião, inclusive à luz das lições de Max Weber, não há dúvida de que o referido sistema, primeiro ao prender o homem à esfera da produção e, em seguida, ao aprisioná-lo à esfera do consumo, deu origem a uma reação em cadeia que parece minar a religiosidade por todos os lados, prejudicando fatalmente nossa capacidade de compreender este mundo e respeitá-lo. T. S. Eliot atribuiu parcela importante de culpa ao exagerado papel atribuído por nossa Era à ciência. Nos versos abaixo, traduzidos por Rubem Alves, os saberes, que buscamos acumular, contrapõem-se à sabedoria, que deixamos de cultivar:
O círculo sem fim da idéia e ação,
De invenção sem fim, de experimentação sem fim,
Traz conhecimento do movimento, mas não da tranqüilidade;
Conhecimento da língua, mas não do silêncio;
Conhecimento de palavras, e ignorância da Palavra.
Para resumir a ópera poderíamos dizer o seguinte: distraído por miragens de felicidade, cooptado por ilusões de poder, encerrado num universo artificialmente desprovido de sentido, reduzido a instrumento e afastado de Deus, o homem tornou-se menos criativo e mais sujeito à manipulação, ao mesmo tempo arrogante e tíbio, menos propenso a exigir uma vida absolutamente melhor sobre a Terra. Descrentes, em outras palavras, com relação à existência de um propósito maior para este mundo, perdemos a capacidade de nos reconhecermos, mutuamente, como filhos de Deus. O mesmo ocorre no que diz respeito ao modo como compreendemos e nos relacionamos com a natureza: perdemos a capacidade de ver as diversas facetas do mundo em sua essencialidade, à luz, por exemplo, daquela evolução cósmica, rumo à Cristificação de todas as coisas, de que nos fala Teilhard de Chardin.

Nessas circunstâncias, somos como que obrigados a declarar como Paulo Honório: "endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada". No mundo reificado, somos, de fato, como aquele cego de Betsaida, narrado pelo Evangelho de Marcos, a espera de uma cura, porque, como ele, não nos acautelamos do fermento dos fariseus. Nesse sentido, superar a consciência reificada implica adquirir olhar qualitativo sobre o mundo e, com Francisco, "a capacidade de chorar, de padecer com" diante do sofrimento do outro, porque de outro modo estamos na escuridão da autorreferencialidade. Em última instância, significa superar a racionalidade instrumental, que opera através de cálculo sobre a adequação eficiente entre meios e fins, sem que se coloque em questão a validade dos próprios fins, mesmo quando eles importem na destruição das condições de sobrevivência do homem sobre a Terra ou na alienação de sua própria humanidade.